domingo, setembro 02, 2007

Carta aos Meus Alunos (Parte 1)

Jamais sonhei em ser professor. Esta não é a minha profissão, pois nunca estudei Pedagogia, nem fiz Licenciatura. Dessa forma, quando numa tarde do mês de janeiro de 2001, um amigo me telefonou perguntando se eu não tinha vontade de ministrar aulas em uma faculdade, senti uma borrifada em meus ouvidos e um tremor no coração, como os que sentimos quando inesperadamente uma moça bonita cochicha algo bem de perto, soltando ventinhos frescos de Halls Preto perto de sua nuca. Meses depois estava eu, com meus recém completos 28 anos, entrando na sala de aula de uma faculdade, disfarçadamente com o pé direito para dar sorte.
As pessoas utilizam essas superstições sempre que esperam uma ajuda extra, normalmente advinda de algum ser abstrato, um santo, Deus, enfim, de algo que não é material e que ocupa as mentes daqueles que crêem que podem conseguir algo mais do além.
O problema é que, provavelmente por excesso de credulidade, eu faço isso até hoje. Sempre com o pé direito.
Talvez seja porque nunca me sinto suficientemente bom para exercer cargo de tal importância. E é justamente por isso que não deixo de pensar em meus alunos, todos eles, um dia sequer, inclusive quando estou em férias. Os pensamentos são bons, ruins, preocupados, resignados, enfim, refletem um conjunto de percepções sobre momentos distintos. Tive alunos que me odiaram, que me amaram, que confiaram e desconfiaram de minhas capacidades. Tive alunos esforçados, carentes, interessados, geniais, preguiçosos, engraçados, mau-humorados, interessantes e desinteressantes.
Alunos comunicativos, retraídos, tímidos, ousados, competentes, qualificados, amigos, desorientados, desesperados, corajosos e inteligentes. Todos eles, absolutamente todos, foram maravilhosos para mim, pois me ensinaram coisas tão diferentes sobre a vida, que seria impossível explicar. Só existe um tipo de aluno que não me ensinou nada, ao contrário, só me aborreceu. Mas, paciência.
Transmitir conhecimento e informação para cabeças tão diferentes é o grande desafio do professor. Reconheço que nem sempre alcanço meus objetivos, entretanto, estes dependem de uma contribuição básica por parte dos alunos: interesse.
O interesse se traduz na leitura dos textos, na participação em sala de aula, nas conversas de corredores, nos questionamentos e em uma série de outros fatores que são capazes de transformar um assunto inicialmente chato em algo surpreendentemente interessante. Mas para que esse efeito aconteça o aluno deve estar sempre com sua cabeça aberta e curiosa para todas as coisas que se colocam ao seu redor.
Passei esta semana toda pensando em uma aula que ministrei da disciplina de Ciência Política. Não gostei muito de meu desempenho e ao trocar e-mail com um aluno, descobri uma parte de meu erro, o qual tentarei repará-lo nas próximas sessões.
Desta singela troca de e-mail aprendi que minha limitação sempre pode ser compensada por meio da generosidade e honestidade desses alunos especiais, que fazem valer a pena o esforço. Por isso, agradecendo esta conversa eletrônica, reproduzirei uma mensagem que escrevi, logo nos meus primeiros meses de aula, para uma aluna que me perguntava sobre Locke. Farei isso por duas razões: primeiro porque, coincidentemente, foi sobre Locke que falamos em nossa última sessão de Ciência Política (esta que não estava satisfeito com o resultado) e em segundo lugar porque o e-mail pode ajudar a todos que, como esta aluna, também estão confusos com o resultado de nosso último encontro. Não reparem na informalidade das palavras, mas sim no conteúdo resumido, que pode ajudar a esclarecer algumas dúvidas.
Para todos esses alunos que compreendem o significado de um curso superior, para aqueles que se interessam em aprender e que não medem esforços para captar tudo o que puderem ao longo do curso, enfim, para todos os que demonstram garra, esforço, dedicação e um alto senso de responsabilidade e caráter, eu agradeço imensamente pela oportunidade de aprender com vocês, parte das coisas que deveria ensinar.

Carta aos Meus Alunos (Parte 2)

"Cara Aluna (preferi apenas retirar o nome da aluna),

Infelizmente só pude responder seu e-mail agora. Também não sei exatamente se compreendi sua questão, uma vez que são tantas dúvidas que talvez você mesma não saiba como formulá-las. Isso é normal quando estamos nos deparando pela primeira vez com um tipo de pensamento até então pouco explorado. Mas tentarei ajudar.

Locke nasceu em 1632, portanto, no período em que o capitalismo estava sendo forjado. Filho de uma família burguesa (seu pai era comerciante), Locke era um médico que depois se transformou em um pensador político tão importante a ponto de ser um inspirador da revolução norte-americana e dos filósofos do iluminismo, os responsáveis pela Revolução Francesa.

No caso de Locke, destaquei a importância de sua idéia sobre a democracia e os cidadãos. Ele vai reafirmar a existência do cidadão. Entretanto, para Locke, nem todos podem ser considerados cidadãos, uma vez que existem os proprietários e os não-proprietários, sendo que os primeiros se enquadram, enquanto os segundos não se enquadram na categoria de cidadão.

Observe que para Locke a questão da propriedade é muito importante. Lembre-se que esta é uma característica típica dos pensadores liberais, os quais defendiam com ênfase a liberdade e a propriedade.

A teoria da propriedade para Locke é fundamental e foi considerada muito inovadora para a época. E porque ela é tão importante? Você se lembra que Hobbes escrevia sobre o estado de natureza e o Estado Civil? Pois é, para Hobbes, a propriedade surgiu após os homens terem passado de um estado para o outro, lembra? Pois bem, para Locke, é justamente o contrário, pois a propriedade já pré-existia, isto é, ela já existia antes dos homens se organizarem em sociedade.

E isso é importante, porque o que Locke está fazendo é defendendo a propriedade como sendo algo natural. Assim, a propriedade é um direito natural, portanto, o Estado não pode interferir nessa questão. Locke, com suas idéias sobre a propriedade, sobre os direitos inalienáveis da vida e da liberdade criou o chamado individualismo liberal

Talvez você possa estar se perguntando: e o que tem de tão importante nisso? Como essas idéias puderam influenciar tantas ações políticas???

É que com suas idéias, Locke, ao separar o Estado e a sociedade civil, formulou a idéia do Direito à Resistência, ou seja, a idéia de que a sociedade civil deve lutar para que não mais existam Estados tiranos, aqueles que desrespeitam os princípios da cidadania e, claro, da propriedade privada.

Como os EUA viviam sob o domínio Inglês, portanto sob uma tirania, as idéias de Locke foram inspiradoras para os revolucionários argumentarem a favor da independência, como forma de criar um estado autônomo. Dessa forma, eclodiu a guerra civil americana, sendo que a este episódio tão importante da história seguiu-se a Revolução Francesa, sem dúvida uma das mais importantes datas da história ocidental, a qual moldou o tipo de Estado em que vivemos hoje.

Repare que é quase uma evolução em cadeia, pois, no Brasil, o movimento da Inconfidência Mineira foi inspirado nas idéias da Revolução Francesa que, por sua vez, foi inspirada pela ação da revolução norte-americana e pelo pensamento de Locke !!!!!!!

Tudo isso acontece nesse período em que o capitalismo começa a se formar e tanto a monarquia, quanto o poder político da Igreja começam a ruir.

Conseguiu entender melhor? Reparou que Maquiavel abriu o caminho para Hobbes, que abriu o caminho para Rousseau e Locke? Entendeu a importância desses caras? Espero que sim!

Um abraço,

Renato"