Antes de debruçar-me sobre dados, pesquisas e números, farei uma ressalva utilizando como base uma teoria da Ciência Política chamada "Teoria da Escolha Pública". O que está acontecendo com a crise dos alimentos pode ser muito bem explicado com o uso dessa teoria, a qual demonstra como os grupos de interesse, cada qual defendendo suas demandas, podem, simultaneamente, perder todas as suas batalhas.
A crise dos alimentos é um exemplo bem acabado de como os interesses pelo Etanol, a pressão de agricultores europeus, a defesa de subsídios dos governos ricos, os programas de ajuda humanitária aos países pobres, os preços do petróleo e a dinâmica dos mercados agrícolas resultou em uma espécie de jogo de soma zero, em que no final o conjunto dos atores sai, todo ele, perdendo. Alguém poderia refutar esta afirmação dizendo que os países produtores de petróleo, por exemplo, nunca ganharam tanto dinheiro. Entretanto e apesar disso, se o cenário da crise dos alimentos se transformar em um problema sem controle, até mesmo os poderosos da indústria do petróleo perderão, ainda que menos, muito menos, do que aqueles que estão do outro lado da cadeia: os miseráveis que passam fome há muito tempo e que, diga-se de passagem, também perdem há muito tempo.
Vamos à teoria e certamente quem entender entenderá, se é que me entendem!
A Teoria da Escolha Pública , disciplina relativamente nova da Ciência Política (ou da economia), trabalha com o uso de conceitos e ferramentas próprias da economia como forma de análise para a política e os serviçoes públicos. É excessivamente simplista afirmar que na escolha pública, “um político é visto como mais um agente que tem como objectivo maximizar o seu bem estar, e não como um servidor altruísta dos interesses do público em geral.” Porém, esta definição pode ser um primeiro passo para delimitar o centro das atenções de seus teóricos.
Pensamento de cunho liberal, a Teoria da Escolha Pública trabalha com a “desromantização” da política, com as falhas de governo e com uma visão eminentemente economicista para assuntos diversos, tais como as políticas de bem-estar social promovidas pelos governos. Estudiosos dessa linha de pensamento mostraram que os governos não corrigem facilmente as falhas de mercado; eles normalmente tornam as coisas piores. “A razão fundamental é que informações e incentivos que permitem que os mercados coordenem as atividades e necessidades humanas não estão disponíveis para os governos. Assim, eleitores, políticos burocratas e ativistas que acreditam estar promovendo o interesse público são levados por uma mão invisível a promover outros tipos de interesses.”
Essa afirmação, ainda que com seu conteúdo de verdade o qual é impossível mensurar neste momento, não deve ser tratada como a realidade absoluta referente aos resultados finais das ações do setor público. É certo que devemos distinguir os graus de eficácia conforme as estratégias adotadas para a consecução dos objetivos, bem como por meio da análise dos processos utilizados para resolver problemáticas diferentes existentes na sociedade de modo geral. Portanto, decidir que a ação da burocracia é incompetente na mesma medida para solucionar o problema de evasão nas escolas públicas, para tratar do uso de drogas por parte da população adolescente e para oferecer equipamentos gratuitos de qualidade para os idosos é colocar em uma mesma seara todas as formas de gestão para assuntos tão diversos. Dessa forma, ao tratar de modo geral de algumas idéias dos teóricos da escolha pública temos que partir do pressuposto de que os resultados finais das intervenções dos governos são diferentes, principalmente se levarmos em conta a natureza dos problemas, os processos com que foram “resolvidos”, a estrutura (humana e material) utilizada para a consecução dos projetos e ações e até mesmo as convicções políticas dos governos, as quais podem ser diferentes dependendo do tipo de problema a ser enfrentado, como é o caso, por exemplo, da Dengue, a qual exige esforços dos governos federal, estaduais e municipais, os quais não são necessariamente alinhados ideológicamente uns com os outros.
O modelo de política e democracia da escolha pública presume que a política seja um sistema que consiste em quatro grupos de tomadores de decisões, quais sejam, os eleitores, os eleitos ou políticos, os burocratas e os grupos de interesse. Parte-se da presunção tácita de que cada grupo irá buscar seus interesses da melhor forma possível e que tal choque nem sempre soluciona o problema de todos, ao contrário, tende em algumas situações a fazer com que todos percam. Os políticos buscam votos, os burocratas buscam mais recursos por meio de orçamento e, ao mesmo tempo, maior segurança no trabalho e eleitores e grupos de interesse buscam mais riqueza e renda. Presume-se ainda que cada grupo busque algo que esteja em outro grupo como, por exemplo, políticos que buscam votos dos eleitores e grupos de interesse; eleitores que buscam serviços de políticos e burocratas; burocratas que procuram obter maiores receitas provenientes dos eleitores-contribuintes e dos políticos e assim sucessivamente. No modelo da escolha pública presume-se, também, que cada indivíduo controle um determinado tipo de ativo. “Cada um tem seu interesse pessoal e é orientado por um certo propósito, cada um se engaja em um processo decisório racional. Infelizmente e precisamente ao contrário de mercados com direitos de propriedade bem definidos e defensáveis, os processos políticos têm certas propriedades que diminuem a eficiência e desencorajam a harmonia entre os auto-interesses. Ao presumir agentes políticos auto-interessados, estamos simplesmente dizendo que a maioria das pessoas se identifica mais facilmente com suas próprias do que com as de outras pessoas.”
Contudo, o mundo não é um poço de egoísmo, onde as pessoas insensíveis e individualistas, busquem seu próprio bem indiscriminadamente e a qualquer custo. A sociedade, formada por sistemas e sub-sistemas, é uma imensa rede de relações muitas vezes afetivas, as quais promovem em situações distintas o pensamento da caridade, da troca, do afeto e do querer bem. Ocorre que normalmente tais sentimentos se restringem aos grupos isolados ou mesmo para pessoas muito próximas, em que as relações de afeto são mais intensas. É usual uma mãe despertar preocupada com o casamento de sua filha. Um amigo inventar uma maneira de agradar o outro por seu aniversário. Um marido tentando solucionar um problema de saúde de sua esposa ou mesmo colegas de trabalho se reunindo para emprestar dinheiro para aquele companheiro em situação difícil. Pouco usual é uma mãe despertar preocupada com o casamento do Presidente da República, dois amigos reunidos em uma festa de aniversário pensando em estratégias para aumentar as receitas correntes do Governo Federal, um homem comum buscando solucionar a problemática do atendimento do SUS ou um grupo de colegas criando alternativas para acabar com os conflitos pelo Petróleo no Oriente Médio.
O que defendem os teóricos da escolha pública basicamente é que a maioria das pessoas se identifica muito mais com suas próprias preocupações do que com as preocupações das outras pessoas. Nessa linha, temos que os grupos de interesse e seus sub-grupos acabam por defender seus auto-interesses em detrimento das necessidades e demandas da sociedade como um todo. É mais que certo que em sociedades democráticas nem todos os grupos serão contemplados quando da tomada de decisão por parte dos gestores. Mas também é certo que as regras estipuladas pelo sistema, tais como as maiorias simples e maiorias absolutas, por definição, implicam na existência de vencedores e perdedores, ou seja, aquele que perdeu deve, em respeito às normas e à regra do jogo, respeitar as decisões e ao mesmo tempo garantir a manutenção desse sistema.
Aliás, um dos problemas do sistema democrático é justamente o desequilíbrio dessas forças, pois quando apenas um grupo deve arcar com o ônus das decisões, este grupo tende a questionar os métodos utilizados pela democracia, deixando de apoiar o sistema em sua totalidade, simplesmente pela percepção de que jamais terá suas demandas atendidas pelo Estado.
Se realizarmos uma observação simples sobre a história do século XX nos países da América Latina e as relações de seus povos com a democracia, será facilmente perceptível o fato de que nos momentos de crise, os principais grupos e seus atores sociais viviam em excessivo estado de desequilíbrio de forças, o que gerou reações por parte dos perdedores e contra-reações por parte daqueles soberanos que, ao se sentirem ameaçados, recorreram aos golpes de Estado, aos métodos mais perversos e desumanos de perseguições e demais barbáries perpetradas contra seus inimigos.
Em um ambiente de estabilidade política institucional o jogo de forças dos grupos dominantes não cessa jamais, pois este movimento faz parte mesmo da dinâmica da vida social e política das nações. É pouco questionada atualmente a idéia de que são, de fato, algumas elites as responsáveis por todos os processos decisórios referentes ao bem público. A dúvida está no fato de como tais elites se organizam e como suas decisões são afetadas pelos grupos de interesses.
De qualquer forma, se você resistiu até o fim, já pode vislumbrar os parâmetros estabelecidos pela Teoria da Escolha Pública para entender como foi possível criar as condições para a existência dessa crise. No próximo post, utilizando números e dados estatísticos, poderemos vislumbrar melhor a idéia de que os efeitos alcançados das políticas em diferentes campos nem sempre são aqueles almejados por todos.
Obs.: Todas as citações feitas neste post vêm das obras:
- MITCHELL, Willian C. & SIMMONS, Randy T. Para Além da Política. Rio de Janeiro. Topbooks, 2003.
- ALVES, André A. & MOREIRA, José M.: O Que é a Escolha Pública. 1ª Edição. Cascais. Principia. 2004.
Um comentário:
Não sei professor, mas pelo que entendi...
- essa Teoria, ''relativamente nova'', me parece muito velha e a cara do Brasil. Sinto que todos nós aprovamos esse ''sistema'' por meio dos nossos votos, de nossa resignação e total analbafetismo político. Nossa juventude não tem nenhum tipo de interesse pelo tema e não compreende que a chave para a mudança está nessa palavrinha, sinônimo de aborrecimento para muitos.
- sobre a crise, sinceramente prefiro aguardar seu próximo post com mais dados e estatísticas para tecer minha opinião (não quero me precipitar sobre o assunto). Enquanto isso vou refletindo um pouco mais sobre a relação dessa crise sem pé, nem cabeça alardeada mundo afora.
beijokas intrigantes.
Gabi Conde
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