sábado, fevereiro 10, 2007

Violência III

Se me permitirem, faço agora o último post sobre a questão da crueldade contra o menino do Rio de Janeiro. Me distancio bastante do caso que gerou essa série de posts sobre violência. Na verdade, me pareceu desgastante escrever sobre este triste episódio que me sensibilizou profundamente.

É que na tentativa de estimular a reflexão sobre o tema em questão me lembrei de uma obra que tenho em casa chamada “O Ponto de Mutação” de Fritjof Capra. O autor trata de um fenômeno em que possa haver a reconciliação entre a ciência e o espírito humano. Reproduzo trechos para vocês, permeados de alguns comentários. Mas atenção: tenham paciência, pois o texto é relativamente longo para um blog.

Trataremos um pouco sobre a evolução da ciência humana e de como seus alicerces construídos entre os séculos XVI e XVII influenciaram o modo de interpretar o mundo.

“Antes de 1500 a visão do mundo dominante na Europa, assim como na maioria das outras civilizações, era orgânica. As pessoas viviam em comunidades pequenas e coesas, e vivenciavam a natureza em termos de relações orgânicas, caracterizadas pela interdependência dos fenômenos espirituais e materiais e (...) a estrutura científica dessa visão de mundo orgânica assentava em duas autoridades: Aristóteles e a Igreja. No século XIII, Tomás de Aquino combinou o abrangente sistema da natureza de Aristóteles com a teologia e a ética cristãs e, assim fazendo, estabeleceu a estrutura conceitual que permaneceu inconteste durante toda a Idade Média.

A perspectiva medieval mudou radicalmente nos séculos XVI e XVII. A noção de um universo orgânico, vivo e espiritual foi substituída pela noção do mundo como se ele fosse uma máquina. Esse desenvolvimento foi ocasionado por mudanças revolucionárias na física e na astronomia, culminando nas realizações de Copérnico, Galileu e Newton.”

Agora faço um grande pulo para chegar até Descartes, cujo método analítico de raciocínio foi fundamental para o desenvolvimento da ciência como em parte a conhecemos até hoje.

“O ponto fundamental do método de Descartes é a dúvida. Ele duvida de tudo o que pode submeter à dúvida: todo o conhecimento tradicional, as impressões de seus sentidos e até o fato de ter um corpo; e chega a uma coisa que não pode duvidar, a existência de si mesmo como pensador. Assim chegou à sua famosa afirmação “Cogito ergo sum”, “Penso, logo existo”. Daí deduziu Descartes que a essência da natureza humana reside no pensamento, e que todas as coisas que concebemos clara e distintamente são verdadeiras.

O método de Descartes é analítico. Consiste em decompor pensamentos e problemas em suas partes componentes e dispô-las em sua ordem lógica. Esse método analítico de raciocínio é provavelmente a maior contribuiçãode Descartes à ciência.” (CAPRA, 1982)

Queridos alunos, não desistam e continuem a acompanhar este raciocínio. Ocorre que a ênfase no pensamento cartesiano (como ficou conhecido o pensamento de Descartes) levou a uma fragmentação do pensamento de modo geral. Um efeito prático dessa influência está, por exemplo, na divisão das disciplinas acadêmicas. O pensamento de Descartes fez com que ocorresse a separação entre a mente e a matéria; o corpo e o espírito, sendo que esta separação entre mente e matéria exerceu um efeito profundo sobre o pensamento ocidental. Pois continuemos mais um pouco com Capra.

“Descartes baseou toda sua concepção da natureza nessa divisão fundamental entre dois domínios separados e independentes: o da mente, ou res cogitans, a “coisa pensante”, e o da matéria, ou res extensa, a “coisa extensa”. Mente e matéria eram criações de Deus, que representava o ponto de referência comum a ambas e era a fonte da ordem natural exata e da luz da razão que habilitava a mente humana a reconhecer essa ordem.

Para Descartes, a existência de Deus era essencial à sua filosofia científica, mas, em séculos subseqüentes, os cientistas omitiram qualquer referência explícita a Deus e desenvolveram suas teorias de acordo com a visão cartesiana, as ciências humanas concentrando-se na res cogitans e as naturais na res extensa”.

Esse quadro de uma perfeita máquina do mundo subentendia um criador externo; um Deus monárquico que governaria o mundo a partir do alto, impondo-lhe sua lei divina. Não se pensava que os fenômenos físicos em si, fossem divinos em qualquer sentido; assim, quando a ciência tornou cada vez mais difícil acreditar em tal Deus, o divino desapareceu completamente da visão científica do mundo, deixando em sua esteira o vácuo espiritual.” (CAPRA, 1982)

Mais tarde, outros cientistas, filósofos e pensadores de modo geral aparecerão, tais como Locke, que influenciou a criação do Iluminismo e, de modo geral, da moderna idéia do pensamento político e econômico baseados no individualismo; além de Kant, Laplace, Hegels...

O que interessa nestas linhas que escrevo é observar que o vácuo espiritual imposto pela história do pensamento científico se tornou característica essencial de nossa cultura, mas que em momentos de aguda crise moral e política há uma tentativa de retorno a certas bases espirituais que podem, de fato, promover a reconciliação entre a ciência e o espírito humano. Não se espera que um caso específico de violência brutal possa ser o ponto de partida para esta aproximação e, portanto, para o início de uma maneira distinta dos seres humanos observarem o mundo e seu meio ambiente. Afinal, fosse assim, milhões de outras brutalidades cometidas ao longo de nossa história recente poderiam em tempos anteriores ter estimulado este processo.

Porém, se pensarmos em grandes períodos de tempo, se analisarmos a história do desenvolvimento e decadência das civilizações (seja a Egípcia, Helênica, Islamita, Cristã Ortodoxa...) e buscarmos os processos de quebras de paradigmas e profundas transformações históricas, certamente poderemos concluir que atualmente vivemos um período de transição para uma nova maneira de interagir com o mundo e seu meio ambiente, apesar de que muito provavelmente não estaremos vivos para observar essa mudança, uma vez que a mudança somos nós.

Resta-nos compreender quais as transformações que ajudaremos (ou escolheremos) promover, pois estas dependem, em última instância, do tipo de comportamento e visão de mundo que devemos adotar em nosso cotidiano para sustentar a idéia de harmonia entre ciência e espírito; entre a vida humana e a natureza; e entre a materialidade necessária à existência de cada indivíduo, aliada ao bem estar e paz social que, acredito, as sociedades ainda almejam. Apesar dos pesares.

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