A aeronave levantava vôo, a babá de branco dobrava o joelho direito para compensar a inevitável força da gravidade que empurrava seu corpo para o fundo da aeronave e, naquele momento, rasgando todos os manuais de atendimento ao cliente, a comissária, quase aos gritos, mandou a babá retornar ao seu assento. Incrivelmente, quando estava prestes a se sentar novamente, a babá deu meia volta, foi em direção à comissária e perguntou sorrindo: mas depois você esquenta a água, né?!
Deu para ver as veias dos olhos da comissária encharcadas de sangue pulando em direção à babá!
Então o senhor da mochila da CVC pensou alto: hiiii... esqueci meus comprimidos. Simultaneamente, eu, sua esposa e a comissária gritamos: Depois você pega!!!!
Um pouco sem graça com meu destempero, enfiei minha cara no livro que estava lendo: “Uma Breve História do Mundo”. Seu autor descreve, entre outras coisas, os avanços da humanidade em milhares de anos de história. Descrente, adoraria vê-lo sentado em meu lugar observando aquela bagunça. Duvido que falaria em desenvolvimento humano!
O avião atinge sua velocidade de cruzeiro, as luzes se acendem, a babá volta a pedir água quente, o senhor da CVC levanta-se para buscar seus comprimidos e as pessoas todas já circulam, só de meias (claro!) pela aeronave. A vida voltou ao normal.
Tento dormir. Há um ruído estranho à minha frente. Ele se repete com freqüência, mas meu sono não me deixa localizá-lo. Meus olhos lutam, cheios de areia, meu sono é insaciável e meu auto-controle diminui. Não posso dormir, nem ficar desperto. Os ruídos são intermitentes. Então aproveito a presença da comissária e peço um café. Prontamente atendido, consigo finalmente localizar a origem do barulho que não me deixava dormir: a porta do banheiro! Sim, a porta do banheiro fora freneticamente testada durante os primeiros minutos de vôo. Reparei que todos queriam entrar no cubículo.
Abro uma nova fonte de observação. Como o movimento era intenso naquela área, fecho os olhos e começo a contar quantas vezes a porta foi aberta, fechada e travada. Calculei que em um espaço de 30 minutos o dispositivo do trancamento da porta foi acionado 23 vezes. Multiplico esta quantidade por dois (são dois banheiros), depois pelas horas de vôo, divido pelo número de passageiros e chego a conclusão que, mantido o ritmo inicial, cada pessoa teria que ir 2,9 vezes ao banheiro até o final da viagem. Descontando as crianças a bordo que usavam fraldas e a vovó perdida que provavelmente também vestia o mesmo aparato, porém na versão geriátrica, cheguei à estarrecedora conclusão de que cada passageiro iria ao menos 3 vezes ao banheiro ao longo do percurso. Então me perguntei: que diabos colocaram na porcaria da refeição a bordo???
Mas o problema não é a comida, mas sim esse “faniquito” descontrolado que brasileiro tem em se mexer. Qual é a dificuldade de se manter sentado? Qual o problema em permanecer tranquilo, lendo um livro, apreciando uma bebida e calçado? Mas não! Tem que correr no corredor, contar piadas em alto e bom som, fazer guerra de bolinha de meia e reclamar que o país está uma bagunça!
Em meio a toda essa balbúrdia o pai da família aristocrática encontra-se em frente ao banheiro com seu colega, o patriarca da família da vovó. Este reclama que tem que pagar propina ao governo para fazer suas obras. Ele é engenheiro, mas não teme em construir uma imagem ruim de sua empresa publicamente. Coincidentemente o outro também é engenheiro e assim ambos constroem um diálogo pouco concreto e em blocos, sendo que cada empreendimento intelectual de um, acaba sendo incorporado pelo outro, ainda que a metragem dos raciocínios seja mínima.
Nessa linha, o aristocrata solta a seguinte tese: o problema da queda da Bolsa de Valores de São Paulo é esse monte (sic) de taxistas que agora compram ações! Esperem! Silêncio Total! Vocês leram isso?! O problema da queda da bolsa é dos taxistas! Gênio! Grandioso! Sublime! Jamais teria pensado em uma construção intelectual tão precisa, tão bem amalgamada com um raciocínio concreto de primeira linha e fundição baseada na melhor matéria prima! Estava lá a resposta para minhas indagações! Consigo até ver a Fátima Bernardes, fazendo cara de preocupada enquanto lê no prompt: “O Banco Central anunciou medidas para conter a entrada dos taxistas na Bolsa de Valores. A partir da próxima semana a categoria poderá estacionar seus veículos no máximo a 300 metros da entrada da porta principal. Estão proibidos também de operar na Bolsa e comprar ou vender ações de quaisquer tipos. Com esta medida o governo acredita que a economia brasileira irá suportar a saída de investimentos e, ao mesmo tempo garantir a estabilidade dos mercados mundiais.” Aí vem o comentarista: “É verdade, após sofrer fortes quedas, a Bovespa pretende impedir a patuléia da classe média de investir em ações. Tudo começou com os taxistas, mas os analistas já se preocupam com a chegada de outras categorias, como as de lojistas, profissionais liberais e aposentados. A consultora financeira “Gold Money Wealth” fez uma interessante pesquisa em que dizia que pobre e classe média tem mesmo é que pagar impostos, comprar geladeira nas Casas Bahia, comer Maçã do Amor no Parque da Mônica e deixar os investimentos da Bolsa de Valores para os ricos”. É o fim do mundo.
Neste momento, o piloto anunciou que iniciara os preparativos para o pouso. A viagem chega ao fim com um efusivo aplauso dos passageiros. Tudo parece novamente tranqüilo e normal. A família aristocrática se arrumou no banheiro e saiu toda perfumada. O senhor da mochila da CVC perdeu os óculos dentro do avião.
Finalmente saio da aeronave, mas minha mala demora para chegar. Todos se vão. Menos eu. Olho em volta e por um vidro do saguão vejo um fio de luz da manhã irrompendo pela madrugada. Finalmente minha mala azul chegou. Retiro-a da esteira lentamente. Vou em direção à saída, mas algo me chama a atenção. Olho para trás e lá estão elas.
A vovó, provavelmente esquecida por sua família, toma leite em uma mamadeira amparada pela babá de branco. As duas estão descalças rodando em cima da esteira de bagagens de número 4.
Lá fora pego um táxi e puxo conversa com o motorista. Tento falar sobre futebol, mas ele só quer conversar sobre a Bolsa de Valores.
2 comentários:
Poxa Luiz, com textos assim deveria mesmo retomar e tornar mais frequente os posts...
Muito bom!! :))
Portal Meio Aéreo - Comissários de Bordo
Deus me livre deste maldito voo... rsrsrsrs...
Muito boa, Re...
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